A vida acordadocêntrica: E se afinal, um sonho não for só um sonho?

Room with eye, 1930, Maurice Tabard

Para onde quer que vamos, no tabuleiro da vida, parece sempre possível identificar um padrão. Quanto mais longo o caminho percorrido, mais fácil o jogo de encontrar e selecionar as peças que podem contar uma história. A história que escolhemos. Ou a história que nos escolheu? Ou as duas? Sempre as duas.

Tenho pensado sobre quais são os núcleos das vidas das pessoas. As suas multi-layers. Para além da família. A sua presença ou a sua ausência. Quando está presente, a família, em corpo-objecto, mas  ausente noutra presença. O vazio que deixa. O espaço em branco. O que não foi. 

Qual é o core, o norte, o waze, o algoritmo?

O que vale, e o que não vale? 

As fronteiras. A escala dos valores. Na base a sobrevivência. Sempre a sobrevivência. Quem é que quer só sobreviver? 

À medida que se ascende, a preocupação com a perda, a queda… 

À medida que se avança (não é sempre a subir, pois não?) O funâmbulismo. 

Eu funambulo. Constantemente.

Haverá quem acerte à primeira? Assim sem dúvidas, hesitações, num passeio ligeiro, despreocupado? 

Haverá quem, sim há sempre quem… Aquele, é assim, porque tem de ser, então digam lá. Atribuição causal externa e estável. Nada a fazer. E por ser assim, desenrola-se um novelo sem nós, sem fios de outras cores que se metem pelo meio, e que é preciso desfiar, desembaraçar, desenlear. Ou então abraçar. Não-erro. Cicatrizes-histórias-de-vida (não são todas?)  

Quase, quase a chegar à casa partida. 

Mergulhei recentemente num artigo sobre o sono e os sonhos, escrito por Rubin Naiman, com o título In exile from the dreamscape, qualquer coisa como Em exílio da paisagem dos sonhos. 

Muitas das informações e reflexões não são novas. Outras, para mim, embora aparentemente subtis, foram recebidas com grande wow, NO! Wait a minute! Daqueles minutos que rapidamente se estendem à hora e depois ao dia e depois aos muitos dias. 

Li o artigo e foi como se tivesse, eu mesma, reconhecido o meu exílio das paisagens oníricas que diariamente (ou noitemente) abrem a porta à possibilidade de uma outra existência, potencialmente erigida sob uma série de elementos, de regras, que são absolutamente diferentes em natureza dos elementos e estruturas que governam o pensamento da pessoa vigíl. Ou seja, uma outra forma de ser eu, de ser mente, de ser corpo, de ser ser

Ao que parece, o sonho, como sabemos, nas culturas ocidentais ocupa o lugar de Plutão no Sistema Solar. O Sol, neste caso, é a existência acordada, racional, governada essencialmente pelo córtex pre-frontal. Depois lá na periferia, no limbo, estão os sonhos. São só sonhos. Tão , que como Plutão, têm vindo a sofrer despromoções constantes. Com excepção da dimensão fisiológica – as ondas cerebrais, as mudanças metabólicas, químicas. Essas, na grande asa da neurociência, pululam perto do centro e são o foco dos estudos que ainda se fazem sobre o sonho. O que se perdeu completamente, pffff, foi a parte narrativa. A dimensão fenomenológica do processo de fazer um sonho.

Quero explicar isto bem. Porque me parece uma coisa muito importante. No resgate. Quero ter direito às minhas paisagens oníricas.

O sono REM (rapid eye movement), quando as pessoas movem os seus olhos por baixo das pálpebras (muitos mamíferos também exibem este comportamento) e o sonho não são a mesma coisa. É possível sonhar noutras fases do sono (o sono tem também uma fase mais profunda, uma espécie de coma, e outra mais leve e sem movimentos dos olhos). Então, sono REM e sonho não são a mesma coisa. Um ocorre no corpo o outro, na mente.  

E então Naiman avança… que é preciso triangular. 

Ouvir falar em triângulos deixa-me sempre num estado de encanto que não vou agora interpretar, mas é um facto. Como se se acende-se uma luz, uma boca. 

Naiman: – é preciso triangular num novo conceito de ordem superior a que vou chamar REM/dreaming (o equivalente, em português a REM/sonhando). Trata-se de um híbrido, um estado de consciência híbrido; meio-acordado, meio-dormido. Uma fronteira entre os mundos material e etéreo, entre corpo e mente.   

Este triângulo tem impacto na memória, na aprendizagem, na imunidade, e também na capacidade de expressão artística e na criatividade. Isto é capaz de proteger o sonho de cair definitivamente no lugar de Plutão…

Muito importante, nesta minha descoberta, é que o REM/dreaming tem um efeito tipo alongamento sobre a consciência. Diz Naiman que REM/dreaming expande e reconfigura a nossa consciência. E isto é uma coisa extraordinária. Que um lugar que para a maioria das pessoas desta cultura e sociedade ocidentais é por natureza só um sonho, uma coisa para rir às vezes, ou que assusta às vezes, e para esquecer sempre, a que não devemos dar grande ou nenhuma importância, possa ter impacto na nossa senhora consciência. Claro que da perspectiva absoluta da neurociência (traço típico do ocidental), o sonho subjectivo é apenas um incidente, na sua dimensão secundária, tipo migalhas que se sacodem. Um efeito colateral do sono REM. 

Mas, do ponto de vista da fenomenologia da coisa, cujo estudo é muito, muito antigo e possui essa qualidade da riqueza que resulta das histórias longínquas que atravessaram os contos e os pontos, transformando-se naquilo que em tempos constituía a identidade de um grupo, a sua narrativa, o seu meme – as lendas, os mitos, na base de muitos rituais, um sonho nunca é só um sonho.  

Naiman propõe a possibilidade de que ciência e subjectividade se envolvam. Num diálogo, numa dança. Um ato sexual. Eu fico ainda mais curiosa. E depois explica: o corpo e a mente movimentam-se de formas distintas durante o REM/dreaming. Na linguagem da neurociência, as funções executivas da zona cortical superior separam-se das funções somáticas da zona límbica inferior. Como se a ligação entre a zona nobre do cérebro (numa perspectiva de urbanismo como expoente de desenvolvimento da civilização) e a zona de floresta selvagem (considerada primitiva nesta metáfora de desenvolvimento) fosse interrompida. 

Self-Deceit, 1977, Francesca Woodman

E agora, o que representa a interrupção desta ligação? 

O corpo liberta-se da supervisão da mente autoritativa, conduzida pelo ego.

A mente é libertada dos constrangimentos físicos de habitar um corpo. 

Da perspectiva do corpo, trata-se de uma experiência fora da mente.

Sem a supervisão da mente, a floresta selvagem ganha vida, anima-se, celebra-se; o corpo torna-se selvagem, desordeiro

O sistema nervoso autónomo entra em modo tempestade – poderosas ondas de des-regulação visíveis em EEG, actividade cardiovascular, respiração alterada, oxigénio no sangue e temperatura corporal, all goes wild! 

E continua…

A actividade muscular voluntária entra em modo offline, impondo uma espécie de bondage neurológico no corpo que, independentemente das narrativas do sonho, se torna sexualmente excitado. Sugere-se que esta situação pode ser uma espécie de re-regulação, um restabelecer das configurações originais de fábrica, libertando a tensão acumulada sob a supervisão da mente desperta.    

(…) livre dos constrangimentos de um corpo, a mente é livre para se espreguiçar, contemplar, brincar. A mente em sonho amplifica-se, conversa com demónios, é apanhada num loop mundano de pratos da loiça ou num voo com criaturas místicas ou míticas. Ao contrário do olhar que é conduzido pela intenção da mente desperta e consciente, sonhar é uma forma gentil e receptiva de ver

Leio isto e penso na dificuldade que ter este olhar receptivo, gentil… A urgência para interpretar, explicar, justificar, designar. 

A angustia da ausência de significado. 

Não fazer nada. 

Não pensar em nada. 

Não enfiar em categorias, caixas, gavetas. 

Leio e penso na liberdade que deve ser existir na elegância de estar apenas. Ver apenas. Cheirar apenas. Viver apenas. 

Surge-me Rainer Maria Rilke: “Don’t search for the answers, which could not be given to you now, because you would not be able to live them. And the point is to live everything. Live the questions now. Perhaps then, someday far in the future, you will gradually, without noticing it, live your way into the answers.” (Letters to a young poet) 

E logo a seguir, Ornatos Violeta, Capitão Romance, “…Parto rumo à maravilha, rumo à dor que houver para vir, se eu encontrar uma ilha, paro para sentir…” Paro. Paro.

Este processo, refere Naiman, revela o mundo por detrás do mundo.  

E às vezes o mundo invertido não é bonito. É onde vivem os monstros de Sendak. Se deixarmos, e embora na maioria das vezes a maioria das pessoas não tenha voz activa na matéria, o sonho pode abrir-nos a outros mundos, destruindo ou transformando a nossa sensação de conhecer este mundo. Ao que parece, há situações, como por exemplo a depressão, em que o sonho se empobrece, prevalecendo um big brother da mente consciente, que impede o fantástico e a riqueza das narrativas em comparação com uma pessoa saudável. E parece ainda que são os sonhos-pesadelos, que mais desafio podem trazer, mais mudança, talvez. 

Se deixarmos(este “se” é muito, muito relevante nesta história), o sonho pode gradualmente desintegrar a condição de acordado como centro da pessoa – wake centrism, acordadocentrismo, tradução minha. Uma ideia a que os Ocidentais estão particular e excessivamente vinculados, diz Naiman e eu concordo. E continua… 

O acordadocentrismo é um excesso de confiança subtil, consensual, tenaz (ou pegajoso) e aditivo relativamente a um modo de percepção que interfere com a nossa experiência pessoal e directa do sonho. A seguir Naiman cita um clérigo do séc. XVI, Robert Bolton, que um dia disse (impressionante que o que ele disse esteja agora aqui nas palavras que eu escrevo, na minha mente, a consciente, mas a outra também, espero), então, Bolton disse (não vou traduzir): it is not merely an idea the mind possesses, but an idea that possesses the mind. 

É para reler. 

E outra vez ainda. 

O que Bolton estava a dizer é que quando temos uma ideia de uma coisa, assim uma ideia grande como esta que aqui estou a trazer, depois a ideia transforma a mente, apropria-se dela, obrigando a que tudo seja percebido à luz dessa ideia. Uma possessão mesmo. Será possível escapar a isto?

O acordadocentrismo é um mundo raso da consciência. Que nos avisa para nos mantermos longe dos limites, que nos impede de dialogar com os sonhos e com o inconsciente, diz Naiman. 

Neste momento ocorre-me a pankake person, de Richard Foreman. Um mundo raso. Flat. Este autor, que é escritor de textos para teatro, diz que estes tempos são de um acomodar (no sentido do comodismo, mesmo) à quantidade, mas não à qualidade. Por exemplo, em vez de nos dedicarmos a uma leitura, uma só, em profundidade, ou a treinar um passo, uma manobra, um compasso, um movimento, de forma profunda, envolvemo-nos em vária(o)s, ao mesmo tempo. No entanto, não nos envolvemos de facto com nenhuma, em profundidade. 

Em vez de termos conversas intensas, que vão por ali a fora, ou por ali a dentro, permanecemos apenas na superfície, periferia, neste caso da conversa. Em vez do todo, optamos pelos fragmentos. Os tópicos, os títulos, as letras grandes, os rótulos. Em vez de pensamento deep, in depth, aceitamos uma resposta imediata, instantânea. 

Em vez da complexidade, do difícil, da dúvida, do esforço, dedicação, suor e todas essas coisas que são das coisas a que nos damos ou recebemos a sério, o imediato, indubitável, fácil, célere e perfumado; ligeiro. Sem consequências. Pelo menos, aparentemente.      

E é também neste viver de superfície que perdemos a oportunidade de observar as paisagens oníricas e as histórias que contam (que contamos) sobre a nossa identidade, desejos, perda, amor… 

Primal Matter, Dimitris Papaioannou

As caricaturas das imagens da nossa vida acordada, sugere Naiman. Mais ainda, se nos permitirmos considerar esse território, mais profundamente, estes espelhos que atravessamos durante o REM/dreaming transformam-se em portais que nos levam para lá do espelho, como a Alice. 

Na atmosfera rarefeita da paisagem do sonho, a mente é mais curiosa do que intencional, mais empática do que julgadora, mais presente do que quando estamos acordados”, escreve Naiman.

No fundo, se deixarmos, os sonhos não são apenas sonhos, um milkshake dos eventos do dia-a-dia distorcidos pelos espelhos mágicos da ausência de supervisão. A nossa experiência do sonho, independentemente das nossas crenças, é sempre uma experiência com significado, na medida em que o impacto do sonho sobre o corpo e sobre a mente é semelhante ao impacto das nossas experiências enquanto estamos acordados. 

Esta ideia é, para mim, disruptiva.

Com que então? What do you mean Naiman? 

O que diz Naiman é que estarmos na disposição de observar a paisagem onírica, não quer dizer tomar decisões em função dos sonhos, nem requer que acreditemos em fenómenos sobrenaturais. Apenas que os sonhos têm um significado. Têm significado. Não são aleatórios. Mas porque não lhe temos o hábito de os observar, não há possibilidade para que surja uma narrativa, um padrão, uma história. 

Naiman diz ainda que a maioria dos especialistas, actualmente, ignoram o papel do REM/dreaming na nossa saúde geral e mental e na saúde do sono em si e que embora alguns especialistas considerem desordens do sono REM, não consideram que seja a perda do sonho quando, no geral, grande parte da perda de sono é na verdade, perda de sonho. Do sono com sonho. E ainda, a redução do sonho subjectivo a um epifenómeno do sono REM, retira a nossa experiência pessoal e, embora o cérebro seja mediador do sono REM, o cérebro não sonha. Nós é que sonhamos. 

Esta perda de interesse, geral, por tudo o que não seja objecto, evidente, imediato, que é transversal a quase todas as nossas actividades, no caso dos sonhos, tem levado a um progressivo desinteresse pelo trabalho do sonho, no contexto da psicoterapia. 

Naiman fala em epidemia silenciosa de perda do REM/dreaming. E que este silêncio é exactamente o que carateriza a nossa relação com o inconsciente. 

Escreve: “se sonhar é um diálogo com o inconsciente, então estamos em desentendimento”. E prossegue… “somos uma cultura morfofóbica (que é como quem diz, com muito medinho da transformação), temerosa dos sonhos, do nosso inconsciente, do inconsciente”. 

Ai Naiman… 

Como noutras coisas, em última instância, trata-se sempre de uma decisão pessoal (quer dizer, se a pessoa se libertar do conceito que possui a sua mente e a impede de ver para além do conceito…). 

Uma decisão sobre o que fazer com os sonhos que temos. Sejam eles de olhos fechados ou abertos… Porque, segundo Naiman, com a devida prática, o lugar dos sonhos, que é afinal outro estado de consciência, pode ser visitado de livre vontade e podemos lá demorar-nos se nos sentirmos amados, Frida. 

Em 2009, referência no texto de Nainam, um investigador que é também o campeão do sonho lúcido, Lee Adams, resumiu a sua perspectiva no texto Are Dreams the Original Psychadelic?Conta Adams que a nossa glândula pineal e pulmões produzem substâncias psicadélicas durante o sono REM que serão o que leva à sensação de transcendência ou dissociação. 

Every night… An inside magic mushroom.

Parece que para quem raramente se lembra dos sonhos, decidir-se a espreitar esse lugar é um primeiro passo muito importante. Parece que o inconsciente, ou esse outro consciente afinal, está bastante aberto ao diálogo. E não se trata de aprender a traduzir o sonho para a linguagem da vida acordada, mas sobre aprender o dialecto do sonho; aprender a cultura da paisagem onírica. Diz Naiman que observar os sonhos com olhos de acordado é como querer ver o maravilhoso céu nocturno e estrelado através de uns óculos de sol… Que o trabalho que podemos fazer com os sonhos não é tanto do da análise e interpretação, mas o de testemunhar e permitir a experiência do sonho. 

Parece que estamos sempre a sonhar. E que embora acreditemos que os sonhos sejam como as estrelas, que podemos ver apenas no céu nocturno, na verdade estão sempre lá… Apenas ofuscadas pela luz do dia. Apenas ofuscados, os sonhos, pela luz da consciência vigíl.

Carl Jung, referido por Naiman, relativamente à presença constante do sonho, ofuscado pela consciência do estado acordada, usou a expressão waking dream, não para dar conta das fugas de realidade, o sonhar acordado que todos conhecemos, mas de um estado de consciência associado por exemplo à arte, a imaginação, á brincadeira, à intimidade, e práticas espirituais. Um estado de receptividade. O sonho acordado, este de Jung, refere-se à utilização dos nossos olhos do sonho, os olhos que observam quando estamos em REM/dreaming, mas à luz do dia. 

Perder-se do acordadocentrismo e espreitar o mundo atrás do mundo. Desta forma, conclui Naiman, revela um sentido mais profundo de quem somos, tocando a a história de fundo das nossas vidas.  

E se afinal um sonho, não for só um sonho?

Inês Peceguina

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