A coreografia do rapaz da caixa (e não havia tofu).

Photo by Yogendra Singh on Unsplash

Não temos tofu. 

Não fazia mal comprar mais uns pacotes de leite. Talvez um arroz negro, daquele que comprámos da última vez, tão bom, com sabor a frutos secos. Demora 45 minutos a cozinhar; mas há coisas que só podem desenvolver-se na vagareza. Como o feijão, o grão, as leguminosas, no geral (o feijão humano também). Há pessoas a quem não cai bem (o feijão humano também). Mas para a maioria, o que não cai bem é o frasco ou a lata onde já chegam cozidas. Porque se forem demolhadas na vagareza, melhor ainda se em mergulho duplo com alga kombu, nasce uma amabilidade que alimenta o corpo de forma compreensiva, e que inclui a nutrição da microbiótica do nosso intestino. Esse lugar que se sabe ter neurónios. Um festim de fibras. Eventualmente anunciado pela fermentação e devida produção de gás. Novamente, o problema não é o gás em si. Demolhadas e cozinhadas em adagio, as leguminosas são naturalmente menos geiserianas. Ainda assim, o grande, grande problema é que analisamos os movimentos e produções ou produtos do corpo com grande repúdio, vergonha mesmo, como se se tratasse de uma anomalia, em vez de um sinal evidente de que o organismo vive, respira, e se movimenta na sua cronobiologia maravilhosa. 

Vivo.

Não temos tofu. Nem leite, quase.

Paremos num instante no supermercado. Vou sozinha. Ok, as miúdas também, mas prometem que não se põem a fazer listas de desejos. Nem um, nem dois. Silenciosas. Num instante. 

Não há tofu. 

Zero. Nem do simples, nem do verde, nem fumado. Nada. Há dois tempeh. Tiro-os apressada antes que alguém os veja. Os miúdos não gostam de tempeh. Eu gosto. Não há bebida de arroz. Não há quase nada. Mas inventa-se sempre. Já que estamos ali. Umas massinhas. Um leite de aveia que pode ser para os batidos. Talvez não se sinta a diferença. Um pão. Batatas doces. De polpa laranja. As melhores do universo. Arroz integral de grão redondo. Não é negro, nem sabe a nozes, mas leva igualmente 45 minutos. Na panela de pressão. Um elogio à paciência nos dias de hoje. Mais umas bolachas de castanha. O pacote grande. Uns cotonetes com pauzinho de madeira. 

E uma couve flor. 

Vá, vamos embora. 

Pelo meio ainda dois ou três desejos das miúdas. Arregalo os olhos e lembro-lhes da condição. Nada, não vou comprar mais nada!

Chegamos à caixa, dispomos as compras. 

Doze ou 13 itens no total (pasta de tâmara, já me esquecia, a barra de 1Kg). 

Gosto de dispor os produtos de forma obsessiva. Primeiro os mais pesados e duros. A geometria a ditar o segundo critério. Para o fim os frescos, os leves, os frágeis. Rapidamente avanço para o lado de lá da caixa. 

O rapaz da caixa espera. 

Como se não quisesse interferir ou quebrar a intenção da minha composição compulsiva de mercearias. 

Espera.

Eu avanço. 

Ainda antes, resgato duas caixas de cartão para colocar ordenadamente e com a maior optimização de espaço possível, os itens adquiridos. 

Nem um tofu. Nem uma bebida de arroz (o leite) da que queríamos ter comprado. 

Chego ao meu lugar. A fase de recolha dos produtos.

Respiro. 

Inspiro e expiro para recuperar o fôlego de atravessar a loja sem ataques de pedidos e desejos de última hora. Necessidades infantis. Iguais às dos adultos, com a diferença de que as nossas, dos adultos, são sempre justificáveis e mesmo necessárias. 

O rapaz da caixa pega na pasta de tâmaras. 

Faz o bip electrónico e luminoso, o laser vermelho e preciso. 

O código numérico, a identidade única daquele objecto.

Pasta de tâmaras. 1 5 7 1 1 1 9 3. Nem mais. Nem menos. 

O bip

A seguir, o rapaz segura o bloco de pasta de tâmaras com a sua mão. Como que sustém um Graal. Eu elevo os meus olhos e sigo a viagem lenta das suas mãos. 

O rapaz é alto. Antes que eu possa recolher o Graal de tâmaras, a sua mão deve descer. E desce, len-ta-men-te. L e n t a m e n t e. Eu observo. 

Com alguma expectativa pela antecipação de não deixar cair. De receber com desvelo. Com gratidão. Já está. Foi sublime, leve, invisível a transição. Das mãos do rapaz para as minhas mãos. Agradeço. 

Photo: Gialuca Menti, Tango.

A seguir, com o mesmo grau de investimento e de vagareza, o processo repete-se com cada item. Um-a-um. Uma cozedura lenta. 45 minutos. A alga kombu. Agradeço de todas as vezes. De todas as vezes ele sustém, um segundo, em suspenso e olha para mim. Para dentro dos meus olhos. Numa intensidade hipnotizante. Inebriante. Agradeço de todas as vezes. Ora em português, ora em inglês, e até em francês. Senti que um merci seria mais apropriado para receber o tempeh, não obstante o tempeh ter a sua génese na Indonésia e na Indonésia se falarem muitas centenas de línguas e uma delas até ser o francês, mas sem grande expressão, ainda assim. 

Uma coreografia súbita. Um elogio à vita contemplativa. O direito à preguiça. A celebração do esquecimento do tempo. 

A métrica. 

O calendário. 

O horário. 

A rentabilização

A gestão. 

As apps para ser mais produtivo, mais eficaz, tudo intencional. Tudo com um objectivo, um ganho, um badge, um like

Uma coreografia imprevisível. 

The full life experience. “… the creation and apprehension of beauty is embodied in ‘a purposiveness without a definite purpose” (Imannuel Kant, citado aqui). 

Neste 2021 a estrear, num aparente set back e desaceleramento 2020, é estranho que se possa fazer qualquer coisa que não tenha uma intenção de rentabilizar ou melhorar. Seja o que for. O exercício do corpo. O exercício de ser um bom amigo. Um bom pai ou mãe. 

Não havia tofu. 

Mas havia uma coisa que não é uma coisa. 

Uma oportunidade rara. 

Um desprendimento da lógica do consumo. Num lugar por excelência de consumo. 

Uma antítese. 

Um paradoxo. 

Ao mesmo tempo desprendimento e envolvimento absoluto. A coreografia. As mãos num movimento lento, de ascensão, de entrega. A mente, as nossas mente, livres de um estado de intenção… Em vez disso, plenas de atenção. 

Uma renúncia ao objectivo, ao propósito, à função, ao fim. 

Arte. 

Beleza. 

A beleza de um estado de consciência de estar ali, naquele momento. Naquele espaço-tempo. Os meus olhos. Os meus ouvidos. As mãos. A pele. A sensação de continuidade entre os corpos. Uma ondulação. Um vento. Um horizonte sem limites. 

Em síntese: nunca sabemos quando é que na vida o gesto mais insignificante se pode transformar numa experiência psicadélica. 

Arte. 

Naturalmente que se este ritual se verificar repetidamente, morre o encanto. 

Mas está viva a possibilidade para descobrir.

Está ali, aqui, em qualquer lugar, a possibilidade para des-fragmentar. Para diluir as fronteiras do que eu sou. Onde começo. Onde termino. Onde já não sou ego, eu. Nem tâmaras. Nem o rapaz da caixa. 

Não havia tofu. 

Nem um.

Mas havia tudo o que raramente se encontra quando é esse o fim da procura. 

Inês Peceguina

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