Do silêncio e do medo de dizer. Das mulheres e das mães.

03

É do silêncio que tenho medo. Sim. Assusta-me.

Esse silêncio que se queria dizer completamente. Aguçado, corpulento, áspero, pesado e viscoso que não desliza pela garganta, antes se engole e regurgita, para trás e para a frente, levando pequenas quantidades de pele, e de saliva. Amarga. Amarga-me. Enrola-se, às vezes, na língua e espreita; mas logo regressa maior. As mãos no pescoço para aliviar a asfixia. Meio simbólica. Meio real.

É silêncio alvoraçado. Como um vento. Dentro duma caixinha de música. Ali, fechado, numa ilusão de paz. Quando se abre, ligeiramente, só se deixa ouvir em brisa. Um nocturno de Chopin. Mas não é nada disso. É de lágrimas, de medo, de mau trato, de indiferença e, em grande parte, feito desse hábito que (quase) todos temos, uns mais que os outros, de vivermos a nossa vidaprimeiro para fora em vez de primeiro para dentro.

Esse silêncio de hoje é-o também na condição de um silêncio feminino. Não é o meu silêncio, porém. Hoje não. É de outra mulher. Mulher-mãe. Que o foi quase sempre em singularidade (ou em dupla, ela-e-o-filho).

Nunca existiu triângulo nuclear.

Contínuo a espantar-me com a indiferença com que nos tratamos uns aos outros.

Contínuo a espantar-me com a ligeireza com actuam os especialistas e cujo poder permitiria (teoricamente) actuar muito melhor do que os não-especialistas. Porque é dos primeiros o poder. A ligeireza com que deixaram de ter dúvidas. De ouvir. De pensar. De observar. E de sentir.

Síntese sintetizada: o menino desta mãe não é daqueles meninos robustos, rijos, esbeltos que começam a parkourar a vida aos 3 anos. O menino é daqueles de infância demorada, lume brando. Como o chili que fiz ontem à noite. Lume brando. É preciso deixar as especiarias fazerem a sua magia. O chocolate 85% de cacau derreter len-ta-men-te. A caíena. A alga Nori que suaviza a fermentação do feijão…

É um desses meninos. Que se apura e se afina com jeitos macios e delicados. Lume brando. Um adagio. Não é para pressas. Correrias.

E assim, nesta sua vida pouco triângulada, por opção do segundo vértice que abandonou a geometria ainda do menino ter um ano, foi sendo preservada e cuidada esta sua natureza, com a intenção objectiva de não danificar, só porque sim, esta pessoa-menino.

E lá foram os dois, mãe-e-menino. Como a Leonor ía à fonte, serenos, tranquilos, felizes.

Até que o pai do menino se aborrece com a brandura do caminho. Na verdade, do menino. Não lhe parece próprio, da natureza de um homem…

A mãe: “Não sei explicar… Parece que quando estou em paz, como que incomodo”.

E tem razão. A paz pode ser muito incomodativa. Sobretudo para quem não faz a menor ideia onde deixou a sua. Sobretudo para quem, caso a encontrasse, algures entre a infância e a adolescência, já não lhe saberia o que fazer. A paz é uma coisa que não sobrevive quando há muitos preceitos. Muitas expectativas. Muito rigor.

E neste confronto com o lugar pacífico onde não está, de onde decidiu sair, recorde-se, este homem-pai sente que não pode ser. Assim não pode ser! Alguma coisa não deve estar bem. Este filho não é diferente dos outros que tem (na verdade, é). Não pode (na verdade, pode). Que era o que faltava!

É do silêncio que tenho medo.

Assusta-me. Esse silêncio que se queria dizer completamente, inteiramente, mas que só se pode não dizer.

Quem é que quer saber disso tudo?

Se o mundo anda todo numa guinada ora para um lado, ora para o outro. Tudo em contramão de si mesmo.

“Então o menino vai ser o quê? Mecânico? Carpinteiro? Bailarino?”

Nisto, a mãe que recebe com agrado qualquer uma destas opções, avança com trunfo da felicidade.

Pode ser que a felicidade ainda seja um bom argumento. (Pensa a mãe).

“Só quero que o menino seja feliz”. “Que possa crescer e amadurecer um pouco.

A mãe quer que o menino seja feliz.

E o menino crescerá. Abandonará ele o seu teatro de sombras. No seu tempo. O tempo de amadurecer. O tempo de deixar de ter medo das sombras. Que não é o mesmo que fingir não ter medo.

Vai daí, o terceiro elemento zanga-se. Arraiva-se. Ali não há silêncio. Porque não há espaço no lugar de dentro. Importa só o lugar de fora. O que dizem as pessoas. Os colegas do trabalho. A família. Que vergonha. As pessoas… O que vão pensar?

Não é tarde nem é cedo. O menino também é seu. E até agora ainda ninguém dizia nada. Mas agora todos dizem. Então? É bom aluno? Joga à bola? Porta-se bem? Tem quantas actividades de enriquecimento curricular? Já está a estudar Mandarim? Agora todos têm alguma coisa a perguntar. A recomendar. A sugerir. A ajuizar.

Mas ninguém olha para o menino.

É este silêncio. Este desolhar de que tenho medo.

Assusta-me. Esse não dizer que se queria dizer mas que, a pouco e pouco, já não se pode.

Vá, pianinho, senão ainda é pior.

Não é tarde nem cedo. O menino também é seu. Se é assim, se o menino fica com a sua mãe, então também quero. Ao menos no tempo em que o menino está comigo sempre posso assegurar que se faz gente séria.

Contratamos explicadores. Professores. Os melhores. Assim já ninguém diz. Ou dizem “Ah, que esperto! O menino vai ser como o pai, de certeza.”

Não é tarde nem é cedo. Pumba!

Quando decidiu que não estaria lá, para triangular, ninguém disse nada. Ninguém se importou. O menino cresceu. Passaram mais de meia dúzia de anos. Agora quer o seu vértice de volta. Ou isso ou o menino não pode estar assim com a mãe. Que lhe faz mal. Ao menino? Não. Ao menino não. A si. Ao homem-pai. Faz-lhe mal ao ego. Ao super-ego. Faz-lhe comichão. Põe-se a transpirar. Quando não sabe nada sobre as coisas põe-se assim a transpirar e isso dá-lhe comichão. De modo que assim não podia estar.

Estava tudo bem. O menino estava bem. Mas ele não.

E foi assim. De uma assentada. Vai-se para tribunal decidir sobre a vida do menino. E o juiz, que não sabe nada do menino, nem da sua vida, que não sabe nada da geometria desta família, decide que está bem, que o menino é o menino de sua mãe, mas que assim tanto também não pode ser. Quer lá saber do relatório do psicólogo. Quer lá saber do menino e da sua história. Quer lá saber se o menino se demora a contemplar e se atrapalha a subir e a descer escadas. Que vá ser gozado, humilhado, comparado, apressado a deixar de ser este menino para se transformar noutro, rapidamente. O juiz quer lá saber se a mãe do menino tem o tempo, a motivação, o interesse. Quer lá saber se está na Lei e se é um direito. Tem mais que fazer. A lista dos presentes de Natal do El Corte Inglês à espera. O juiz decidiu, está decidido. Siga!

Gostava de saber como seria se em vez do menino ser de sua mãe, fosse de seu pai. Como seria? Se ainda antes de ter completado um ano, a sua mãe des-triangulasse. Se esperasse mais de meia dúzia de anos para então lhe começarem as comichões e então agora já quer dizer coisas e fazer coisas pelo menino? Como seria? Não apenas o juiz. Teria esta mulher legitimidade para agora querer regular o seu poder materno? Para decidir que o tempo com o pai já era de mais?

Seguem agora os dois. Não mais como Leonor. Não sabem ainda muito bem como.

Para mim isto era caso para ripostar. Por várias razões. Mas sobretudo, pela arrogância.

Da sociedade.

Do homem-pai.

Do juiz.

Pelo silêncio aguçado, corpulento, áspero, pesado e viscoso que não desliza pela garganta, antes deambula, para trás e para a frente.

Leva pequenas quantidades de pele, e de saliva ácida.

Este silêncio. Para não perder ainda mais…

Enrola-se às vezes na língua e espreita, mas logo regressa maior, a fazer arder. As mãos no pescoço para aliviar a asfixia.

Quem é que quer mesmo saber?

Recupero uma breve narrativa de um livro de John Holt. Freedom and Beyond. Um pouco a história deste homem e deste menino.

“Era uma vez um homem que andava cheio de correntes. Preso. Pesado. E passa por ele outro homem, mas sem correntes. Um homem livre. De movimentos amplos. Livre e feliz nessa sua amplitude. Demorado. Contemplativo. E então o primeiro homem pensa… “Ahhh, este tempo todo. Também eu poderia estar sem correntes. Podia tirá-las, libertar-me”. Só que nesse pensamento, logo surge o impulso, o hábito. Surge todo o tempo que viveu acorrentado. Sem saber. Essa sensação é tão avassaladora, tão vasta, que imediatamente surge, peremptório e resoluto, outro pensamento. “Não, o melhor é que alguém acorrente aquele homem… Alguém que o acorrente!!!”

E é isso. Presente de Natal antecipado! Com selo nacional.

Surpreeeesaaaaa!

Alguém que arranje um chá de mel e limão por favor. Não sei ainda como. Nem quando. Mas sei que este silêncio é para ser ouvido.

E que o menino, como todos os meninos, assim o pudessem, tem o direito a esta escolha. Ainda por cima, este mês até se celebra o aniversário da Convenção dos Direitos Humanos.

O menino é um humano. Disso ninguém duvida. E do que ele precisa, mesmo, é que aqueles que têm faca e queijo na mão (faca e humano, para o caso) tenham a grandeza de o tratar como uma pessoa com todas as suas partes. Mesmo que sejam partes mais pequenas.

E precisa também que o pai tenha a maturidade, a adultez para aceitar que é possível que ele não venha a querer jogar futebol e que até se interesse por coisas que não são assim tão habituais e que se entretanto se for fazendo uma pessoa feliz, confiante, motivada, persistente, razoável, disciplinada, criativa e outras coisas que à partida todos trazemos no nosso equipamento base, então, que vão coçar as suas micoses de estimação todos os outros que se põem a transpirar porque os seus meninos andam ali aos encontrões e um pouco atrapalhados.

Com as suas correntes silenciosas.

Um abraço ao menino. E à sua mãe.

E um apelo: não se cansem ainda… Deixem vir o vento. A ventania. Aguçada, corpulenta, pesada e fria. Deixem que deslize pela garganta, fresca, assertiva, determinada. Mesmo que pequenas quantidades de pele se possam galvanizar. Mesmo que seja preciso às vezes beber as dúvidas todas dos outros. Do silêncio e do medo de dizer. Mesmo que isto pareça que é uma coisa apenas e só das mulheres e das mães. Não é. É vosso. Mas é também de muitas pessoas que como vocês, sabem da alegria e da paz de viver em sintonia com os nossos relógios.

Um abraço aos dois.

Fotografia: Antigone Kourakou

Inês Peceguina

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