Sem sinal.

Na conversa de me dizer, regresso sempre ao Alentejo.

Ah, sim, eu sou do Alentejo e vivi lá quase toda a vida. 23 anos. Fui para Lisboa só aos 23.

Entretanto, enquanto faço as contas de cabeça, para saber quanto tempo foi o tempo que já passou, desconcentro-me a pensar no que significa ser de.

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Continua a ser quase toda a vida, sim, por enquanto. Mas quando aqui regresso, já não existe um ser de. A cada regresso, que é tão esparso como as árvores desta floresta pequena e que acaba depressa, como diz a minha filha de 5 anos, tenho sempre maior dificuldade em encontrar o meu ser daqui.

Não sou daqui como a minha mãe. A minha mãe, embora tenha vivido noutros lugares, é mesmo daqui. A minha mãe, que agora vive na grande Lisboa, mas que não tarda e voltará (para sempre?) é daqui, absolutamente. Do princípio ao fim. Tudo o que é aqui e daqui exerce nela o efeito de uma água que se bebe quando já se vinha em sede há muito tempo. As cores, os cheiros, os lugares, os hábitos. O pão, a cal, o campo, a sua casa, o quintal, as árvores que plantou no quintal, o cante alentejano. A Brito. Uma amiga que é também minha e também da infância. Uma pessoa que é maior do que o tamanho normal das pessoas. Daqui. A minha mãe preserva e reserva o seu saltitar de olhos, o encolher e dilatar de pupilas, a lágrima fácil para tudo o que é aqui e daqui. Como se em mais nenhum lugar do mundo o feijão fosse mesmo feijão verdadeiro, tudo o resto sucedâneos, cópias a que nos fomos acostumando. Consigo ver as suas pupilas, como dois corações a bater de alegria no lugar dos olhos.

E depois há também as popias, uma espécie de palavra/símbolo secreto que é só do conhecimento dos nativos. Eu com as popias tenho inexoravelmente uma relação de submissão. Enquanto houver popias a minha amígdala, que é uma estrutura antiga do nosso cérebro dedicada às coisas mais imediatas, não sossega. As popias são o que resta da minha memória mais próxima das línguas-de-sogra. As línguas-de-sogra extinguiram. Nunca mais as vi ou comi exactamente como antes. Se alguém um dia as vir, estarei sempre pronta a verificar se se trata de uma genuína, ou apenas de sucedâneo. Eu nas línguas-de-sogra e nas popias sou do Alentejo. Dilatação de pupilas e coração incluídos. Quanto ao resto. Já não sei.

O regresso a este lugar não é ligeiro, como a calma (calor, aqui) que ainda se sente neste princípio de Outono. Volto como quem quer só ver, sem intenção de experimentar ou ter para si. Ficar à porta, ou à janela. Tenho no corpo uma ideia de que se voltar completamente me parto. Em partes desiguais que não saberia depois o lugar. Há mais contração do que dilatação e ocorre-me sempre a pergunta – como é que consegui aqui viver tanto tempo? E se quiser mesmo, sei a resposta claro. Mas o que me interessa, é a pergunta. Porque eu sei que as pessoas conseguem tudo. E tudo o que eu aqui vivi não foi mau ou terrível, não foi trágico nem único que desse para escrever um livro sobre o assunto. Mas a pergunta surge porque quando aqui entro neste Alentejo, por contraste com imensidão, o horizonte a perder de vista, o céu mais perto do chão e as estrelas todas a conseguirem ser estrelas porque não há outra luz que as imite, luzes sucedâneas de estrelas verdadeiras (aqui os mosquitos não se perdem com tanta facilidade), a pergunta, escrevia eu, surge nessa oposição com a topografia.

Aqui sinto-me contida. No oposto do que sinto quando me sinto livre. E eu não sabia assim de forma explícita que era isso que eu trazia comigo sempre, neste sempre que foi grande que eu aqui vivi. Não sabia. A pergunta interessa-me porque só se transformou em pergunta quando um dia me fui embora. Antes disso eu não sabia que existia essa pergunta. A vida é assim. Vivemos e pronto. Ponto.

A vida não é assim. Não para todas as pessoas. E foi isso que me aconteceu nestas distâncias físicas e temporais. Nestes longes, a perder de vista. Ir-me embora foi o que me trouxe até mim. Antes não me tinha pensado como uma pessoa separada da cadência dos dias. Não sabia que podia escolher. Tanta coisa que eu nunca escolhi porque não sabia que podia. Não sabia que era capaz. Naquele Alentejo, a minha vida foi como o calor ondulante e suspenso. Quando eu e a minha irmã, os únicos seres vivos fora de casa à hora da esturreira (que é o pico máximo do calor) levitávamos rua abaixo para ir ao café da avó. Olhos semi-cerrados e um esgar que antevê os caninos. Tudo ondula. Há uma expressão facial que é a desses lugares de calor parado e sem humidade. Não respiramos enquanto estivermos debaixo-de-água, que é a sombra das telhas, sinuosa como o calor. Corre, corre, cooooooorrrreeeee! Respirar é quase como não respirar de tão escaldante que está o sol.

E eu não sabia que podia ser diferente. O tempo desde que me fui embora acelerou. Disso tenho a certeza. Ou tinha. Porque ao voltar aqui volta também o dejá vu, uma pessoa que está dentro da minha pessoa, mas cuja pessoa de fora não é a mesma e estas duas pessoas, a de fora e a de dentro, não são amigas. Não há conversa. Não há conciliação. Há duas pessoas.

Ao voltar, a minha pessoa mais recente não sabe ser aqui. E a outra, neste lugar onde tanto se desmoronou, paredes e pessoas, tudo aos bocados e cheio de pó, a outra pessoa, a mais antiga mas que é ainda assim a mais jovem, que viveu até aos 23 anos, essa pessoa, é como se flutuasse, como se fosse de outro planeta, outro corpo, outro século.

Lembro-me de quando nasceram os telemóveis. E de como nunca, até hoje, a rede aqui chegou em absoluto. É intermitente. Sem sinal. Procurar um lugar alto, muito alto. Neste lugar de céu vazio a derramar estrelas que são mesmo estrelas. Vejo passar as mesmas pessoas, mas com menos dentes. A acústica também pouco mudou. Zumbidos. Chocalhos. Escarros. Cães que ladram indecisos sobre serem cães, ou lobos. Um coro mórbido de uivos. O sino. Sempre o sino. Morreu alguém. Deixa chegar o sino ao fim, a ver se é velho. Alguém do lar. Se for um velho no fim o sino acrescenta. Uma única badalada. Segura. Plena. Sim. Morreu um velho.

Ao regressar, a minha nova pessoa assusta-se com os padrões que a minha pessoa antiga, porém, a mais nova, 23 anos, tão nova, se habituou a compreender.

Há neste lugar uma melancolia que não sei se é do lugar, ou se é minha. Serei eu? Será isto o re-encontro? Um tête-a-tête para um. Para um eu só.

Não sei dizer o dia em que nos separámos. O dia em que deixámos de nos cumprimentar. O dia em que ao abrir a lata ferrugenta das fotos da infância, sempre com um jeitinho, há coisas que só podem ser sob o jeitinho especial, essa lata, com a infância toda em cores de outono. As fotografias com tamanhos que já não se fazem. Também um pouco enferrujadas. Cheias de grão (outro tipo de grão). Observo-me como se observasse outra existência. Aproximo as fotografias. De cabeça para baixo. Sempre me achei bonita de cabeça para baixo. Mais tarde descobri que o cérebro não sabe ler as caras ao contrário e por isso lhe parecem todas de grande harmonia. Observo-me. Naquele instante para sempre cristalizado. E não encontro. Não me encontro. Olho-no-olho. Persiste um sorriso controlado. Sem dentes. Uma pose. Um querer parecer. E melancolia…

Alguém me tenta telefonar. Depressa! Sobe ao forninho. Sobre ao telhado! A rede aqui é intermitente e é preciso ser-se uma pessoa alta. E eu não sou. Olha, sem sinal. Mais para a esquereeeedaaaaaaa… Não. Deixa, quanto formos ao café talvez se consiga. 

Não sou daqui. E não é um problema de rede que me desliga, que me desconecta. Que me impele a recusar, a rejeitar.

Aqui, um pouco por todos os lugares que observo, vive um desânimo. Ou o meu desânimo, qual princesa adormecida, é aqui que se espreguiça e corpo todo me habita para me apertar duma forma tão apertada, que não posso aqui voltar com o desejo ou a tranquilidade de não ter já as camisolas contadas para assim ter de voltar. Porque fiquei sem roupa, claro.

A roupa aqui fica com outro cheiro. Diz a minha mãe. Um cheiro melhor, naturalmente.

E até concordo. Estender assim um lençol como se as cordas da roupa fossem infinitas, só poderia resultar num melhor cheiro. O problema aqui não é de cheiro. É de ruído. E de solidão. E de não ter sabido, tanto tempo, que tantas coisas eu podia, eu queria, desejava, tanto, tanto, mas não sabia que podia. Aqui persiste um ideia que não sei dizer a fronteira entre aceitação tranquila e consciente ou passividade. Não sei a base. Mas desconfio. Independentemente das consequências. Não se trata de um abraço ao universo. De gratidão. Pelo bom e o menos bom, assim à primeira vista. É mais uma aceitação de resignação de nível primário. Como se ninguém, ou todas as pessoas, tivessem a percepção de que, pelo menos nalgumas coisas, é possível e até desejável que se comunique com o universo. Num diálogo saudável e despretensioso. Afinal não somos também nós Universo? Como as estrelas?

Respiro este dia quente e já sei. Não sou daqui. Não sei se um dia me voltarei a encontrar. Olho-no-olho. Para já, em muito poucos lugares consigo ouvir-me e saber que sou eu, naquele corpo, naquele sorriso, naquela canção, da romã, naquele horizonte, naquela rua-a-baixo-rua-acima, o Tó do Lar, que antes não era velho, a chorar um dia inteiro. À espera do pai. Que nunca regressou para o ir ver. O Tó do Lar, antes um menino com três cromossomas, em vez de dois, no lugar 21 da sua sequência genética. Um choro de quem se descobria na sua diferença, tão pequena na matemática, mas tão colossal na vida. Saberia ele nesses dias, que o pai não voltaria nunca, para o ir ver?

Ouço o sino. Encolhe-se-me o coração. Aqui sabe-se sempre quem morreu. Eu já não sei. Colecciono apenas fragmentos.

Saberia eu ter vivido se esta fosse para sempre a minha casa?

 

    Inês Peceguina

 

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